RECRIAÇÃO LITERÁRIA
O prestígio da literatura de ficção me intriga. Afinal, se trata de invenção e fantasia. E as obras arrebatam, influenciam, atravessam séculos, milênios. Grandes autores são ídolos e heróis de suas culturas e da humanidade. Fala-se, em diferentes épocas, de crise do livro e da literatura, e os autores não param de escrever, os editores de publicar e os leitores de ler. A arte da escrita tem sido sempre uma grande aposta na resistência, na liberdade e na esperança.
Especulando sobre o mistério desse prestígio da ficção literária, identifico dois aspectos ou fatores. O primeiro é a proximidade, a intimidade mesmo, dos processos de recriação com o nosso cotidiano. O segundo é o poder de emocionar na recriação literária.
Sabemos que a ficção literária é essencialmente recriação. Inventar histórias é recriar. O que chamamos de criação podemos chamar também de recriação. Os autores inventam a partir de algo. A recriação é ingrediente necessário e inseparável do romance, do conto, da dramaturgia e da poesia. Mas a recriação não é privilégio dos escritores. Longe disso! Trata-se de um processo bastante familiar e assíduo na vida de todas as pessoas. Estamos habituados a recriar e somos permanentemente expostos à recriação. Cito três exemplos dessa intimidade: memória, história e jornalismo.
Memória é recriação. Lembrar é um processo ativo de produção de sentido, não é tirar informação da gaveta ou do computador. História também é recriação. Às vezes é mais difícil resgatar o passado que prever o futuro. O título de um artigo do professor Daniel Aarão Reis – “Este imprevisível passado” – diz tudo. Jornalismo é outra forma de recriação, presente no nosso dia a dia. Aprendi na profissão que o jornalismo é a luta diária pelo poder de informar. Não se trata de opor, necessariamente, verdade e mentira, nem certo e errado, mas de intermediar percepções, paixões e interesses.
Creio que a literatura deve muito do seu prestígio a essa familiaridade de todos nós com processos de recriação.
O outro ponto é a potência de emocionar da recriação literária. Sabemos que a realidade é mais surpreendente e mágica que qualquer ficção. Mas penso que o texto de ficção pode nos conduzir aos mais altos e profundos sentimentos e, também, nos envolver em sensações mais poderosas que as efetivamente vivenciadas ou conhecidas.
Um exemplo: Há alguns anos, li o romance “O primeiro homem”, de Albert Camus, e me emocionei fortemente com a saga do colono Henri Cormery na Argélia, com a narrativa de sua morte na Primeira Grande Guerra e com o sentimento do filho Jacques, diante de seu túmulo. A primeira parte do livro chama-se “A procura do pai” e a epígrafe diz: “A você, que nunca poderá ler este livro”. No cemitério de Saint-Brieuc, Jacques faz a subtração das datas na lápide e percebe que o homem ali enterrado morrera com 29 anos, portanto mais moço que ele, já um quarentão. Mais tarde, li a história dos personagens reais – Lucien e Albert – na biografia de Camus, escrita pelo premiado Olivier Todd. Tive a impressão de que eram histórias diferentes. São duas recriações, dois belos livros, uma ótima biografia e uma grande obra de arte. Esta, a meu ver, com uma carga de emoção incomensuravelmente maior.
Para concluir, deixo uma questão: na vida contemporânea – que na falta de nome melhor chamamos de pós-moderno – a máscara e o espetáculo assumem status dominante. A manipulação e a fuga através de imagens e representações não é novidade na história. Mas parece ocorrer algo novo agora, um grau maior de artifício, a disseminação explosiva do fingimento e do simulacro. Há uma tendência à banalização da criação (ou da recriação) e da ficção. O poder se supera na capacidade de incorporar vorazmente as forças e energias mais criativas e inovadoras da vida. Entramos num jogo ininterrupto – sem fim anunciado – de versões, cenários e personagens. Então, se a vida se transforma em ficção, que espaço sobra para a liberdade e a esperança na literatura?
XIII Bienal do Livro do Rio
Café Literário
15 de setembro, sábado, às 12h
Recriação literária. Farejando uma história; a fidelidade e a liberdade de criação.
Altamir Tojal, Jorge Mautner e Zeca Fonseca. Moderadora: Rachel Valença.